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parte 10

O Kradzaq largava ao entardecer sua singular âncora próximo à ampla estação portuária de Isawardin. De vários patamares de lajes pálidas e pisos de madeira sustentados por uma arquitetura leve e intrincada, alguns selenícios paravam para observar, atrás dos parapeitos entalhados, a chegada do orgulhoso príncipe pirata. A cidade arcaica e relativamente pouco habitada dispunha-se em torno de uma falésia irregularmente semi-circular, composta de tufo vulcânico, e vibrava à luz da caída da tarde com leves tons pastéis de amarelo naquele ambiente extraviado no tempo -- e no mundo; era um lugar que apresentava uma luminosidade persistente, talvez intrínseca. Tal refúgio, na costa sul de Selênia, só podia ser encontrado por aqueles que conheciam seu segredo; nada encontrariam aqueles que por ventura contornassem navegando o litoral escarpado a procura da Cidade Perdida.


Sírius, o Príncipe do Mar -- um selenício de pele morena, olhos persas e glaucos, e cabelos negros volumosos e rebeldes, presos atrás da cabeça e depois caindo longos e ondulados pouco abaixo da cintura, vestindo um colete semi-aberto no peito e calças bufantes, usando braceletes como adornos e, finalmente, tendo uma larga cimitarra embainhada na cintura -- desce da embarcação junto com dois outros navegantes exóticos. Isawardinos do porto e os recém-chegados viajantes do Kradzaq trocam algumas palavras e cumprimentos, num clima relativamente pacato, enquanto a fragata estacionada começava a ser descarregada pelos próprios nativos. O líder e seu pequeno bando não ficam muito tempo no porto; sobem a quase silenciosa cidade por faustosas porém gastas escadarias de madeira, dirigindo-se à única e ancestral estalagem de Isawardin, Turquesa de Outono.


No interior da taverna, -- naquele dia, bem frequentada --, lamparinas suspensas e nas paredes ardiam calidamente, e o espaço da ampla sala, nem muito pequeno nem muito grande para o seu número de mesas e cadeiras clássicas, parecia aconchegante, especialmente perto da grande lareira ao fundo ou das mesas próximas aos janelões antigos que davam para o mar; havia também um modesto palco para apresentações -- uma banda entoava um andante marinheiro com arcordeão diatônico, viola, flauta doce, esporas nas botas e míudos tamborins --, e o estalajadeiro estava muito ocupado atendendo os fregueses -- servia especialmente chope e destilados aromáticos coloridos reluzentes. O Príncipe escolhe uma mesa não muito grande ao longo de um janelão; a noite caia rápido naquele lugar àquela época do ano. Senta-se ao seu lado Lúridas, um indivíduo com ar sério, não muito jovem, e rosto de feições angulosas; estava envolto em longa toga e capa cinzentas; levava um turbante à cabeça, ornado de uma longa pena; completando seu ar misterioso, cabelos de um branco acinzentado caíam-lhe lisos e densos sobre os ombros. Logo a frente do Príncipe, senta-se também Kassandra, uma moça que vestia uma túnica escura como a noite; com destreza e em silêncio, ela retira o capuz sombrio, descobrindo-lhe um rosto jovem de pele clara, contrastando com belas mechas angulosas de seus cabelos castelhanos; seus olhos são escuros, vibrantes e atentos, mas carrega um ar severo ou desconfiado. Kassandra interpela o Príncipe -- de uma forma ríspida, como se fizesse pouco caso:



KASSANDRA

Mande logo vir a janta! Não aguento mais frutos do mar!!


Tentando ouvir um pouco da música e relaxar o corpo cansado, o jovem Príncipe Sírius parecia desconfortável e atarantado, mas diz com determinação:



PRÍNCIPE SÍRIUS

Minha dama, o pedido já foi feito; ao vosso desejo.


O silencioso Lúridas apenas ergue uma sobrancelha, olhando para o Príncipe. De repente, Kassandra dá um tapa na mesa:



KASSANDRA

O que é isso? Eu vivia melhor em Pelagor! Esbraveja.


O pobre Príncipe coça a testa, resignado.



PRÍNCIPE SÍRIUS

Perdão, my lady. Eu sei. Mas vereis a cozinha aqui é muito boa também. Vede!


Então o taverneiro serve-lhes aperitivos. Kassandra avança rapidamente sobre os mesmos, enquanto o Príncipe tentava abrir um grande mapa sobre a mesa.



KASSANDRA

Ah, não! Sem planos nesta hora! Eu quero comer!






PRÍNCIPE SÍRIUS

Minha dama, se me permitir, temos que aproveitar o tempo; e é tradição.


Kassandra fica furiosa e chia levemente com a garganta, mas então solta:


KASSANDRA

Hah! Vocês, gente do mar...! Todos iguais!


O Príncipe Sírius agradece a boa vontade de Kassandra, e imediatamente começa a estudar concentrado o mapa junto com o outro camarada, debicando um pedaço de pão imerso em suculento molho de pimenta e alho. Mal tinham começado quando chegam bebidas espumantes. Dessa vez, quem servia era uma bela garota bastante alta, usando um corpete e um vestido rendado, com saias duplas caindo-lhe logo acima dos joelhos desnudos; ela tinha cabelos bem loiros e compridos até o metade das costas, terminando horizontalmente bem cortados; tinha um olhar rosado de alegre, um pouco travesso talvez. Quando terminava de lhes servir, debruça-se levemente sobre a mesa para ver o mapa, sem escrúpulo algum, e diz:


GARÇONETE

Hmmm! "Atoro" mapas!


Seu nome era Tatália, e efetivamente ela trocava fonemas: "d" por "t", "g" por "k". O Príncipe olha para ela surpreso:


PRÍNCIPE SÍRIUS

Desculpe, mas este é um assunto para homens; e piratas também. Você não tem permissão.





TATÁLIA

Ahh! Mas eu entento de mapas! Principalmente teste aí!


Ela aponta para o mapa, com um grande sorriso no rosto. Os viajantes do Kardzaq ficam um tanto confusos inicialmente -- além de aborrecidos é claro --, mas o Príncipe fica mais atônito ainda, dada a estranha audácia da garota; mas era quase certo para ele, também, que a garçonete era uma boboca que estava apenas blefando gratuitamente depois de ter bebido vários licores sem autorização do dono da estalagem, e iria fatalmente encontrar problemas com alguém. Então, Kassandra irritada reage e desafia prontamente:


KASSANDRA

Ah, é? Então é de onde, o mapa?!


Ao que Tatália responde dando mais um amplo sorriso:


TATÁLIA

Ermos to Caos!


Um súbito rebuliço na mesa revolve no chão as cadeiras dos navegantes do Kardzaq. Atônitos, ficam fitando aquela garota que estava de pé segurando uma bandeja de prata vazia. Príncipe Sírius sobrevoa o mapa rapidamente com o canto dos olhos pra verificar ou lembrar se não havia nenhuma inscrição óbvia do nome do mapa; não havia nenhuma. Então, Kassandra agarra velozmente o pulso esquerdo da garota, retorcendo-o e puxando Tatália bruscamente para si, fazendo-a tropeçar sobre o piso e ficar semi-debruçada sobre a mesa, com a garganta nua a mercê de um minúsculo punhal sobressaindo do meio de luvas escuras e de dedos dobrados de Kassandra, que num sussuro diz:


KASSANDRA

Quem diabos é você, garota?


Tatália, apesar do susto e da ameaça inesperada -- para ela, pelo menos --, não parecia estar preocupada, apenas sorria menos, e aguardava sem nada dizer. O Príncipe, no entanto, faz menção para Kassandra moderar, dizendo que não havia necessidade daquele tipo de violência na respeitável Isawardin, ainda que estivessem na taverna da cidade; ele era o Príncipe do Mar e conseguia o que ele queria, pelo menos assim pensava -- nesse caso, particularmente porque era bem quisto naquela província. Kassandra então libera a tensão sobre Tatália e observa atentamente ela voltar para sua posição ereta. Tatália então diz, num tom enérgico e sempre alegre:


TATÁLIA

Eu sou Tatália! Eu conheço os campos...! Pausava pois de repente, notava uma coisa, e solta um pequeno grito estridente, apontando para Kassandra: Aah! Você me lembra alkuém!!!


Kassandra obviamente não gostou nada daquilo:


KASSANDRA

Esquisitona! Sai já da minha frente!


O Príncipe Sírius e Lúridas olham para Kassandra, Tatália, e depois apenas se entreolham curiosos sem nada comentar. Quanto a Tatália, sua felicidade geral parecia ter desbotado; lentamente, sua expressão ia tornando-se humilde dando-lhe um aspecto um pouco triste; cabisbaixa e como quem se lembra de sua real função num mundo rígido, faz uma pequena reverência conformada, dirigindo-se para outros clientes mais distantes. Demoraria um pouco até que o Príncipe Sírius e seus seguidores pudessem pensar noutra coisa, então se contentavam em comer beber naquela hora, restaurando algumas das energias depois de semanas de uma perigosa viagem oceânica que poucos seriam capazes de realizar.


Naquela noite estrelada azul-marinha, pretendiam instalar-se em seus quartos provisórios e começar a fazer os preparativos para a importante viagem que os aguardava nos próximos dias, através de um mar verde infindável, terrestre.






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